Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Reflexão sobre a Empatia

Não sei se a Internet ainda se chama Internet. Temo soar a velho ao não utilizar Web, Net ou coisa que o valha mas a bem da reflexão que se segue preciso de um termo claro e não preciso de me alongar na criação de uma taxonomia, pelo menos essa. E o termo Internet ainda me parece ser o mais claro. Não é MECE mas é claro, pelo menos para mim. Uma rápida comparação de resultados Google para cada um dos termos alternativos faz-me acreditar que estou certo - Internet tem uns meros 1,25 mil milhões de resultados contra 3,83 de Net e 2,81 de Web. Internet é um conceito duas vezes mais simples que o melhor concorrente.

A Internet tem-me surpreendido. Sei que o que vou dizer agora vai colocar-me em definitivo no grupo dos velhos, mas a verdade é a verdade. Sou contra as redes sociais e de comunicação. Facebooks, Twitters e afins. Acredito, talvez um preconceito extremado e neurótico, que essas plataformas alienam o único bem capaz de suprir as necessidades sociais.

- Como assim, necessidades sociais?
Notar que pertence às necessidades sociais a posição de destaque, o meio campo, da pirâmide de Maslow.

- E qual o bem que as satisfaz?
A empatia é o bem que supre a necessidade social. Quem diz empatia diz o sentimento de pertença e a afectividade que dela resultam. A necessidade de empatia é humana e universal. O sentimento de vergonha é o sentimento de medo decorrente da suspeita própria de sermos indignos de pertença. Quem não tem vergonha é sociopata.

- E, afinal, qual é que é o problema?
Sobre o bem empatia convém entender a sua produção. Sendo empatia o resultado da partilha de emoções e sentimentos com um interlocutor, façamos um exercício. No dia de hoje, em quantas das nossas interações houve empatia?

No meu exercício apenas uma, sendo agora 5 da tarde, sendo que acordei ao lado da mulher que amo e ainda não fui ao Facebook hoje (sim, eu tenho uma conta do Facebook). Sei que ainda experienciarei empatia hoje, sendo que estou em casa a aguardar a minha mulher, que é sexta-feira e que planeio ainda visitar o Facebook. Sei que por essas condições, e em situações próprias a cada uma, terei oportunidade para empatizar. Mas níveis diferentes de empatia.

Empatia é um processo neurológico complexo. Ela pode compreender três momentos, relativos aos sentimento ou sensações do nosso interlocutor, mas a ocorrência do terceiro momento não é condição necessária. Os momentos são
1. sentir
2. entender
3. responder

A diferença entre os dois primeiros momentos e o terceiro é que estamos obrigados, neurologicamente, a realizar os primeiros. Eles são a base do processo de apreensão. O terceiro momento não é obrigatório à existência de empatia.

Interessante como o terceiro momento se torna também automático em situações de percepção de medo do nosso interlocutor, que involvem a amígdala e, por tanto, são quase reflexas. Mas o meu ponto não está nessas situações específicas mas sim nas quotidianas e habituais.

Voltando ao busílis, talvez a empatia se possa dividir então em duas categorias:
a) Empatia enquanto processo de apreensão automático, que envolve necessariamente apenas os dois primeiros momentos, podendo envolver o terceiro mas apenas no que diga respeito a resposta reflexas
b) Empatia enquanto processo social, que envolve os três momentos, e na qual o terceiro momento exige um processo racional

Sobre os meus planos desta sexta-feira a ida ao happy hour habitual e a visita ao Facebook com certeza implicarão empatia automática mas não necessariamente social. Mas a recepção à minha mulher naturalmente implicará empatia social (assumindo que estamos num dia bom).

Acredito que a empatia social possa não ocorrer diariamente. E, na verdade, esse não é o problema. A empatia social decorrente das ações quotidianas nunca foi a regra, antes a excepção por exigir tempo e disposição. Da cadência dessa excepção advém, no entanto, a satisfação das necessidades sociais e de afectividade, sempre presentes. E o nosso tempo está dedicado a interacções pré-programadas e planeadas onde não existe oportunidade - tempo e disposição, para a empatia social. Mas temos tempo para as redes sociais. Temos tempo até para ver filmes sobre as redes sociais. O que procuramos num Facebook? Informação. Sobre a vida dos outros, os mais e os menos próximos, os familiares distantes. Interessa-nos o que estão a fazer, a opinião deles sobre temas da atualidade, as fotografias da última festa e do novo bicho de estimação. Uma vida social, em suma.

Numa sociedade imaterial em que as relações são geradas com base em fluxos de informação convergentes, relacionáveis, temos, como nunca antes, uma imensa carteira de contactos. Gente materialmente - mas não fisicamente, próxima de nós, com quem partilhamos interesses e planos, mas não afectividade. Uma vida social sem afectividade é uma vida social da vida social, uma vida meta-social, que está para além de nós e das nossas relações afectivas e sociais. A vida meta-social tem a sua origem na vida social e existe para além dela. E disputa, naturalmente, o nosso tempo e a nossa atenção.

Na vida meta-social a empatia existe, sim, mas na sua versão simplificada, automática. Relacionamo-nos com base em informações e retroalimentamos essas relações com informações próprias, exatamente como na vida social. A vida meta-social permite-nos assistir, a um imenso desfilar de informação sobre a vida do outro, dos outros. Emoção, surpresa e satisfação são sensações habituais numa visita ao Facebook, na qual aproveitamos para enviar respostas de reconhecimento e agradecimento, junto com uma panóplia de informação própria. O problema é que a empatia social e a sensação resultante de partilha dos sentimentos e sensações do outro, de alinhamento entre dois, essa chave para as ligações afectivas continuadas, que deveriam ser a espinha dorsal da nossa vida social, dificilmente tem lugar num mundo intangível. A vida meta-social não exige olhos-nos-olhos nem concentração dedicada, comunicação mais que verbal ou simpatia entre dois organismos. Na vida meta-social a empatia social não tem lugar. E a empatia social, na medida em que envolve um processo racional, treina-se. Se não temos tempo, naturalmente não treinamos.

Como fica então a minha ida ao happy hour? Só vou quando sei que lá vou encontrar um amigo. Alguém com quem estabeleci ou com quem suspeito que conseguirei estabelecer empatia, da verdadeira.

Notei que tenho ido cada vez menos a happy hours e essa é a razão da minha reflexão. Talvez precise de acabar com a minha conta do Facebook para ganhar tempo e dar uma chance a alguns suspeitos. Talvez possa mudar de happy hour.

- E... como fica a tua mulher?
Suspeito que ela concorda que eu estou a precisar de mais vida social.

A.