«Klaus recebeu os negócios da família como há tempos atrás recebia uma arma: com tranquilidade e frieza. Estava vivo, ainda tinha uns anos à sua frente, a vida era um inferno e não restava senão continuar: sobreviver, ser o mais feliz possível, marcar a terra com o nosso nome. O nosso nome individual. (…)
Há exercícios para treinar a verdade como, por exemplo, ter medo. Ou então ter fome. Depois restam exercícios para treinar a mentira: todos os grupos são isto, e todos os negócios.
Estar apaixonado é outra forma de exercitar a verdade.
Klaus comandava pela primeira vez os negócios da família. Não tinha medo, nem fome, nem estava apaixonado. Cada dia era, pois, um exercício novo da mentira. Já tinha feito a vida real (tinha-a feito como se faz uma construção, algo material), agora começara o jogo: ganhar mais dinheiro ou menos. Nada de essencial; mas a mentira interessante é aquela que quase parece verdade. Klaus sentia a necessidade de transformar aquele jogo em algo de fundamental. E faria isso até ao fim. Como fizera antes na guerra e na prisão. Quase que não via, aliás, diferenças nas três situações: era preciso ganhar ou não perder, e ele estava só. Eis tudo.»
Excerto de “Um homem: Klaus Klump”, de Gonçalo M. Tavares, 2003
Esta novela, genial a vários títulos, a par dos restantes volumes da tetralogia dos Livros Negros, pode ser lida como uma vinheta retirada dum compêndio dedicado à história natural das categorias morais. Com efeito, trata-se de uma meditação animada sobre a mutação destas categorias, não apenas no plano histórico da humanidade – uma construção da sociedade ocidental –, mas, sobretudo, no plano da história individual média.
No universo em que Klaus Klump e Hertha Vast se movem – uma alegoria do mundo moderno – a piedade, a solidariedade, a compaixão, são categorias morais, não apenas vazias de conteúdo empírico, na medida em que não concretizadas, mas inclusivamente categorias morais, teoricamente, más. “Ter piedade”, “ser solidário” deixam de ser ações intrinsecamente boas, para passarem a ser estratégias de comportamento erróneas, inúteis e ineficientes, em face de circunstâncias adversas – primeiro a guerra e a prisão, depois o mundo.
Bem entendido, este é um universo estilizado: um mundo onde o mal nasce de uma jogada da Natureza e onde não há culpa nem dúvida. Se quiserem, essa é, para mim, a sua principal limitação. (Não estou certo de que este comentário faça sentido quando aplicado a uma obra de arte, mas enfim, cá vou eu). Limitada, pois não reproduz as grandes bizarrias e a cor garrida do tableau da nossa modernidade. Tableau onde pontuam traders da City passando férias na África Ocidental a construir cabanas, lado a lado com estudiosos charlatães, escondidos sob rostos eletrónicos, apregoando o egoísmo como o novo advento moral decorrente da teoria da evolução das espécies.
D.
Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.