Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Over our cities grass will grow



Vi há dias o documentário «Over our cities grass will grow» – poderosíssima fórmula bíblica –, de Sophie Fiennes, que se debruça sobre o trabalho de Alselm Kiefer, em Barjac, no sul de França. Pessoalmente, dispensava as entrevistas com o artista e, acima de tudo, o relato visual de Anselm Kiefer e os seus assistentes no processo desinteressante de realizar a obra – ao que parece, um reflexo cada vez mais inevitável da coeva pulsão voyeur com o making of. Dito isto, em virtude da obra absolutamente monumental que está a ser filmada, há momentos esteticamente superlativos: mormente, as cenas iniciais e finais, ao som da desconcertante música de Giörgy Ligeti.

Não me sinto qualificado ou inclinado para falar sobre a monumentalidade da obra de Kiefer, que encontra em Barjac o espaço, o tempo e a liberdade para se mostrar na sua plenitude. Parece claro, contudo, que estamos na presença de uma arte que opera a uma escala temporal diferente (não numa métrica de décadas, ou séculos, mas de milénios) e que, ao contrário de grande parte da arte pós-moderna, compete nos seus efeitos, não com a televisão ou o jornal, mas com a estranha beleza das grandes manifestações da natureza e dos vestígios das civilizações antigas.

Talvez devido à sua conhecida admiração por Fernando Pessoa, Anselm Kiefer está agora sedeado na Comporta. Oxalá que a filmagem do seu novo recreio artístico caiba agora a um artista da mesma linhagem. A minha sugestão é, obviamente, Pedro Costa.

D.