Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Outra mulher e (talvez) outro homem

Foi com enorme regozijo que recuperei, no início da semana passada, o meu DVD de Another Woman, do Woody Allen, objeto que buscava desde meados de 2007 e que adquiri numa loja do Soho em Londres, na última semana de janeiro de 2005.

Quem tem estado atento a este blogue já sabe que se trata de um dos meus filmes favoritos deste autor. Estejam porém descansados; não pretendo explorar as razões dessa escolha, sob pena de aborrecer os meus leitores (sobretudo eu mesmo) e afugentar A. –  embora me custe bastante não partilhar convosco a feliz materialização do poema A Pantera, de Rainer Maria Rilke (um poeta que seguramente amei mas que nunca compreendi). 

Afinal, este objeto fílmico jazia na arrecadação da casa da minha irmã desde inícios de 2007 (não é possível precisar o mês; fato que explica o serôdio sucesso da minha aturada investigação). Isto qualifica-o de extraordinário a pelo menos dois títulos: i) tenacidade, pois perdurou firme malogradas as perdulárias mãos da minha irmã e ii) resiliência, visto ter sobrevivido intato às cheias que assolaram Lisboa em 2008. (A arrecadação da minha irmã foi inundada pelas águas pluviais. Há vestígios desse castanho manancial na capa do dito DVD. DVD semelhantes sujeitos ao mesmo tratamento não sobreviveram, entre eles e com muita pena minha, Aprile, de Nanni Moretti).

Para além de configurar uma história relativamente aborrecida, este episódio veio reforçar a relação indissociável  da matéria e do espírito no longo combate que sempre entretêm no interior de cada um de nós. Com efeito, se Another Woman tinha para mim um importante significado interior, em boa verdade, poderia reconstitui-lo facilmente, adquirindo uma cópia na FNAC mais próxima, ação que porém nunca efetuei. Por outro lado, há (ou melhor, havia) um profundo desassossego contabilístico por saber ter perdido um objeto que eu próprio adquirira em circunstâncias mais ou menos especiais (a minha primeira ida a Londres na posse de maioridade) e o qual me gerou uma ténue obcecação. Foi esta angústia  material que se viu anulada esta tarde, quando verifiquei que o DVD funcionava como outrora. Quer dizer que posso, finalmente, rever este filme e que este filme é meu.


Adenda 1: Apresento aqui as minhas sinceras desculpas àqueles amigos a quem acusei de aleivosia e extorsão (entre outras brincadeiras perigosas, como, por exemplo, a mutilação de bonecos vodou) no decurso da minha então frustrada investigação.

Adenda 2: Devo a Amâncio Torres (ex-coordenador da Task Force Ano 2000 do Ministério das Finanças), apud L., o uso da feliz da parelha de conceitos tenacidade e resiliência.

Adenda 3: T., quando puderes, devolve-me, por favor, a minha caixa de dois DVD de Emir Kusturica (Lembras-te de Dolly Bell? e O Pai foi em Viagem de Negócios) que, julgo, tens em tua posse pelo menos desde outubro de 2008.

D.