Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Teoria da Fala

Teoria da Fala de Pedro Barateiro é uma performance de sentido amplo. Parte, ou satélite, de uma sua exposição homônima na Fundação Casa de Serralves (2009), a performance brilhou no quarto dia da Verbo 2010 na Galeria Vermelho em São Paulo. Por várias razões.

O tema e a espera
Quem, com base no programa, procurou a performance, encontrou seu espaço, evidente, acadêmico, na sala 1.

"Com Pedro Barateiro e antropólogo convidado (..) um estudo acadêmico intitulado 'Teoria da Fala' criado a partir de 19 páginas de um diário de um indivíduo que viveu numa comunidade onde se terá decidido abolir a linguagem escrita como forma de comunicação. A comunidade que, nos anos de 1950, privilegiava a oralidade sobre a escrita, criou uma forma mais complexa da sua língua através da expressão vocal. Na sessão serão lidos algumas partes dos manuscritos".


A preparação da sala, a disposição da audiência e os dispositivos presentes transportam o seu observador para fora do espaço da galeria, para fora da experiência da arte. Enquanto o tempo passa a dúvida de 'Teoria da Fala' se instala no espectador. Esperar ou não esperar?


Assumindo a sua opção o espectador aguarda. Volta a ler o programa. Na espera o espectador refoca a sua atenção. A linguagem em manuscritos sobre a abolição da linguagem. O que esperar do fim da linguagem? A performance já começou?

A linguagem como performance
A presença, mesmo suportada pela dúvida, apazigua as dúvidas alheias. Outros espectadores vão entrando a medida que o tempo passa. Ao final de algum tempo a sala enche. O ambiente não suporta dúvidas. Vamos falar sobre o fim da linguagem. E enquanto isso toda a gente bate papo.


Entram mais duas pessoas que se sentam nas cadeiras de orador. Ele é o Pedro, ela a Carolina, antropóloga convidada. Suportados por notas, contam que certas páginas manuscritas foram encontradas em um livro comprado em um sebo. Os escritos falam de uma comunidade perdida e desconhecida, de Angola, multi-cultural e multi-lingüística, em que a razão ou a necessidade levaram ao abandono gradual da linguagem. O nosso escritor, que poderia ser produto de uma ficção de Borges, é português e céptico. Incapaz de abandonar seus bens pessoais e seu recurso à escrita como depósito de suas reflexões, de seus diálogos internos, escreve o tal diário que, incompleto?, nos chega ocasionalmente após 5 décadas. Desde a sua descoberta alguma curiosidade científica e histórica se tem ocupado dessas páginas. Chegou à mão de Pedro e de Carolina através de um colega investigador. Alguns trechos do manuscrito são lidos. Entende-se pouco para além de que para o escritor todos os outros se tornaram loucos.


A dúvida toma conta do espectador. Que performance é esta? O tempo para questões da audiência inicia.

Alguém se levanta na platéia e pede a palavra. Explica de forma vaga que a história é muito curiosa e que o relembra de um episódio que seu tio, capitão na guerra colonial portuguesa (1959-74), lhe contara. Por volta de 1967, em coluna militar que avançava no Uíge, província angolana, os soldados encontraram, numa região afastada e onde quase não havia estradas, uma aldeia. Ao contrário de outras da região, dizimadas pela guerra, aquela estava intacta. Tinha também um habitante, que não fugiu das tropas. Um velho de uns 70 anos, de feições centro-européias, de estatura enorme, que tinha pouca roupa para além de um manto. Contava o tio do espectador que, ao se tentarem comunicar, a cada palavra que lhe diziam em português, inglês, francês ou alemão o seu rosto se iluminava como se entendesse o que lhe diziam mas que não respondia nada. E que o mais estranho foi que quando desistiram de lhe falar ele começou a contar muitas coisas mas de forma estranha, sem falar, antes representando com a ajuda do seu manto e de alguns objetos que ia tirando de seus bolsos. O espectador conta que se lembra do tio a tentar imitar o que tinha visto. Que o homem imitava uma árvore ao lado de uma árvore, sem lhe tocar ou apontar para ela, e toda a gente percebia que era uma árvore que ele queria dizer . E que lhes falou, sem palavras, de outras pessoas que viveram ali, que tinham vindo de cidades na Europa e de outros países. Que a guerra tinha começado e que as pessoas se tinham ido embora. Que só ele tinha ficado.

Às perguntas do Pedro e da antropóloga se seria possível saber de que aldeia se trata o espectador responde que seu tio morreu há 12 anos, que não tem contato com a família que ficou em Portugal e que não sabe de nenhuma forma de localizar a tal aldeia.

Perante isso as perguntas continuam a decorrer. Alguém diz que não acredita. O Pedro diz que é obviamente uma fantasia.

A redução da experiência de arte a uma condição de vontade consciente, por via da abdicação dos interruptores habituais como a estimulação sensorial - por via de estímulos combinados de som e imagem, ou do inconsciente - por via da abstração, é um exercício original e incomum. Mesmo a criação de um espaço-tempo deslocado é, em Teoria da Fala, algo estranho. Estamos de volta aos nossos simpósios e conferências, as nossas aulas do tempo da faculdade. Você, espectador, precisa decidir. Você quer ou não quer participar? Participar não produzirá uma reflexão necessariamente diferente a do não-participante uma vez que a não-participação encerra em si própria uma forma de participação. Sem prejuízo para o espectador a consciência de que a arte encerra uma ficção, um engano, divide as águas entre uma platéia crente, participativa, e outra, não crente, também participativa. Surgem nas intervenções tomadas de posição, não exigidas.

A performance de Pedro Barateiro é uma anti-performance no sentido formal. Sem abstração e reduzida ao formato referido, ela não se relaciona nem pertence ao seu meio. A utilização da linguagem formal como mídia implica necessariamente frustrar a expectativa dos espectadores de arte. No entanto apresenta o caráter ritualista, está carregada de símbolos e transporta uma significação. É uma performance re-conciliadora e inovadora.

A arte e a praxis
Da (re)conciliação entre linguagem e performance Teoria abilita ainda uma reflexão sobre a ciência. Numa visão auto-centrista da arte Teoria iguala ciência e arte como fontes principais de significado e reflexão. Enquanto a arte avança na descoberta, sempre nova, de sensações e sentimentos, latentes de significado e impulsionadores de ação/reflexão, a ciência decifra e mapeia fenómenos, também eles latentes de significado e impulsionadores de ação/reflexão. Arte e ciência utilizam a crença, o mito, a possibilidade, como terreno base onde montar suas reflexões e suas teses, seus símbolos e suas sínteses. Na arte tal como na ciência o homem se ocupa de reflexão e da partilha de significação. A base de trabalho é única - a crença.

Nota bibliográfica
Pedro Barateiro é português, tem talvez trinta anos e estudou nas Caldas. Tem trabalhado com as melhores galerias portuguesas e, apesar de jovem, já expôs seu trabalho nos espaços expositivos mais consagrados de Lisboa e Porto.

A.