João olhava a porta bandeira e as suas voltas. Acabava uma marcha. Reparou, para lá da linha dos diretores, na troca de cumprimentos dos mestres sala, nos gestos rituais do chefe-de-cerimónia, na ordem de samba-enredo do anfitrião da escola para a condução da bateria do outro lado da sala. Focou os olhos no estandarte que saía, no gesto dela de desprender o cabo da pequena bolsa de seda, dos gestos protetores do mestre e nos seus sapatos de polaina. Pensou "Eles dançam outro samba" enquanto se virou para olhar, para lá da multidão dançante, a multidão menor de músicos que, da galeria elevada, percutia seu arsenal de percussão. Os gestos do mestre de bateria e dos assistentes eram cirúrgicos. Cá em baixo toda a gente dançava. O cheiro de cerveja e fumo envolvia tudo. "Fumo um cigarro?" Virou-se e viu. Na área protegida pelos diretores tinham entrado as rainhas da bateria. O samba no pé em velocidade sobre-humana, sorrisos lindos, brasileiros, peles perfeitas, purpurinadas. Muitos corpos, quantos? dançavam individualmente aquele samba cardíaco. A bateria não parava de aumentar. A partilha e entrega dos corpos era incrível. Tudo dançava. "Estou no Carnaval e é Julho". Sorrisos em todas as caras. A rainha à sua frente era toda samba. "Folclore baiano, ritual índio e sexo". Com a memória nos versos do Tatit "de salto agulha ela mergulha/... a cada passo em falso dela/eu subo no cadafalso... aos pés daquela/que pisa leve na área/da minha coronária..." reparava nos seus cabelos e na imobilidade do biquíni. E aí reparou que ela reparava nele. Linda, sorria-lhe de volta. Os braços dela desenhavam no ar, deixavam fantasmas que se dissipavam ao som dos tambores. O lábio superior dela tornou-se mais felino, o movimento dos braços orientou-lhe o corpo, a cabeça inclinou-se um pouco e ela caminhou lentamente um samba rápido na sua direção. Os diretores afastaram-se como se ela queimasse. A música deixou de tocar mas a percussão continuava, dentro dele, à volta dele. A sala parou de dançar. "Continua a sorrir". Sentiu o seu hálito e o seu perfume. Sambou só para ele, rodopiou, alongou-se e afastou-se com os olhos sempre cravados nos dele.
Quem viu de fora viu que os olhos verdes dela, que eram exatamente da cor dos olhos verdes dele, se alongaram em aprovação do João. Que ela dançou um samba caprichado e reverenciador daquele nosso amigo. Que se ele fosse um hamster, ela seria, com certeza, uma surucucu.
No táxi o João dizia "Nunca desviei os olhos dela". Certo, certo - as famosas últimas palavas do hamster.
Que inveja.
A.