Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Crónica duma fuga FT-anunciada

Desde há umas semanas que, aconselhado pelo meu vizinho de carteira, Jie Chen, recolho diariamente uma cópia gratuita do Financial Times (FT) no Careers Office em Priory Road, momentos antes de mergulhar silenciosamente no Aquário para iniciar a minha pesquisa. Trata-se, sem dúvida, de um jornal de grande qualidade. O escopo é limitado à atualidade económica e política, o que aborrece sobremaneira, mas é louvável a imparcialidade e previdência destes tranquilos ingleses. (Digo isto sem qualquer ressentimento ou ironia). O leitor convence-se rapidamente que, estivesse um destes superpoderosos repórteres à beira da morte, escreveria sem dificuldade o seu próprio obituário, sempre com a mesma distância, a mesma elegância, a mesma clareza e a mesma objetividade.

Durante as últimas três semanas tenho seguido – com o interesse e apreensão de alguém cujo salário é resultado de uma vaquinha entre o Estado português e o Fundo Social Europeu –, a saga da crise da dívida soberana nos países da periferia europeia. Entre outros justíssimos relatos, li, talvez pela primeira vez, uma análise rigorosa e desapaixonada do trabalho dos governos portugueses liderados por José Sócrates. Desde há duas semanas a esta parte, o FT começou a prever o inevitável colapso financeiro do Estado irlandês, elaborando com a calma e objetividade, as razões para que isso viesse a suceder. Esta semana, num crescendo, o FT prevê que Portugal será o próximo estado soberano a ruir e, em seguida, conjetura que será provavelmente a vez do Estado espanhol ter de recorrer a ajuda financeira. Se e quando isso acontecer, suspeita ainda o FT, a união monetária europeia cairá por seu turno.

Fora desta visão clínica do FT, o mundo, apesar de mais colorido e vivo, parece comportar-se de maneira extremamente infantil: as pessoas perdem salários e, sem resignação às previsões do FT, protestam contra o governo; os estudantes ingleses, insatisfeitos, manifestam-se contra o aumento das propinas; os articulistas irlandeses culpam a Alemanha e descrevem com a poesia possível o seu opróbrio. Numa galáxia ainda mais distante (Portugal), há quem queira culpar o eixo franco-alemão dos ataques que estamos a sofrer dos mercados.

Entre o mundo do FT e um outro mundo, não há uma trajetória, mas um abismo. Ambos os mundos existem e são alcançáveis e, diria até, igualmente sustentáveis. Para irmos de um ao outro, ou seja, para sairmos do mundo do FT em que estamos a viver, necessitamos forçosamente de um salto quântico. Não de uma revolução, mas de uma medida de sonho, informada pela possibilidade de que se trata de um mundo melhor. Havendo essa medida de sonho, precisamos, por fim, de uma inesperada vontade política que lhe dê corpo.

O FT, calmamente, está convencido que essa vontade política não existe e que, em todo o caso, os atuais líderes europeus não a saberiam manejar. Posto isto, caro A., aguarda-me, brevemente, no outro lado do Atlântico.

D.