Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Riviéra, mon amour*

Seria justo que os deuses agora me punissem, pois estou à beira de recordar, qual aedo grego, a temporada atribulada que passei no bairro africano bruxelense, conhecido entre os locais por Matongé. Vêm estas recordações a propósito depois da visionamentalização de uma instalação de Dan Graham, na qual reconheci o mesmo caráter enigmático e intrigante que uma sua outra instalação, minha conhecida desses tempos, implantada numa zona limítrofe deste bairro. Porém, ao contrário desta, aquela encontrava-se, dir-se-ia, no seu genuíno meio ambiente. Com efeito, quando à sua elegância minimalista fora prometida a luz fluorescente das árvores primaveris e o repouso dos espaços arejados, foi-lhe dado em seu lugar um espaço de geometria irregular nas traseiras do banco ING, protegido por uma sinistra grade de ferro verde, a lembrar os modernos pré-fabricados parques infantis. Nessa temporada muitas foram as madrugadas em que, numa marcha acelerada rumo à estação de comboios do Luxemburgo, acossado pela chuva e o frio e ainda combalido da inspiração do retilíneo cheiro a urina da Rue d'Edimbourg, vi na instalação implantada no parque que bordeja a Rue du Champ de Mars (via de escape segura das vielas sombrias traseiras à Chaussée du Wavre) uma salutar metáfora da minha condição nesse bairro tão contrário aos meus hábitos.

Sobre o Matongé, creio, poderia eu escrever longamente. Bairro microscópico e anárquico, instalado no mais interessante retângulo urbano de Bruxelas – aquele que é delimitado a oeste pela Avenue du Toison d'Or, a norte pela Rue du Trône, a sul pela Avenue Louise e a este pela Place Flagey. Neste exíguo urbano convivem a mais perfeita das praças de Bruxelas (Place Saint Boniface) e o mais parisiense dos cinemas da capital europeia (Le Vendôme); lado a lado de um locais que mais sofreu a erosão do ácido úrico (a calçada e o alcatrão que compõem a esquina entre a Chaussée du Wavre e a Rue d’Edimbourg) e a maior concentração de cabeleireiros e salões de beleza africanos. Mas talvez que o muito que pudesse sobre ele escrever, não mais fosse que um eco do misto de incómodo e espanto que me assaltam perante o facto de este bairro concentrar, em ruas paralelas e numa desconcertante sequência, toponímias como Edimburgo, Nápoles, Londres, Alsácia-Lorena e Dublin. Uma sequência que sugere uma lógica porventura surpreendente, mas que, ao cruzar a Rue d’Edimbourg, me surge somente como um inevitável capricho aleatório e sem sentido.

* - Riviéra é o nome de um restaurante africano, sito na Rue d'Edimbourg. Apesar de ter como principais especialidades um modo africano qualquer de cozinhar frango, o Riviéra não dispõe de arca frigorífica. Mesmo nos dias semana está aberto até às três horas da manhã.

D.