Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Ritual in Transfigured Time, Maya Deren


Elenco

Rita Christiani/Maya Deren - Mulher
Frank Westbrook - Homem
Anais Nin - Mulher de Negro/Morte
Maya Deren - Mulher do Fio

Ritual in Transfigured Time (1946), quarto filme experimental de Maya Deren sucede ao seu At Land (1944). Se dois anos antes era já evidente sua crítica social, em Ritual Maya constrói um exercício de exploração pessoal a partir desse ponto de partida. Os dois filmes partilham a utilização de espaços-tempos justapostos, um recurso habitual da artista, mas em Ritual a necessidade é maior.

Do ambiente onírico inicial em que se assiste a um ritual de enovelar lã, numa referência clara ao espaço casa, Pré-Sociedade, e com ligação, até pelo ambiente exclusivamente feminino - gineceu, aos mitos clássicos, a entrada no espaço Sociedade é mediada pela morte. Nesse segundo espaço, representativo da vida social, assistimos a uma coreografia entre homens e mulheres incógnitos. A futilidade das relações sociais patente nas interações representadas opera uma transformação na personagem central que, inicialmente de luto, vai adoptando progressivamente o mesmo comportamento e semblante que os restantes personagens numa metáfora da evanescência do indivíduo frente a sociedade. A passagem para a Intimidade ocorre por recurso ao encontro entre mulher e homem que se desenlaça em um plano de continuidade entre espaços, anteriormente utilizado por Maya em A Study in Coreography for the Camera (1945). No terceiro espaço, antagonicamente encenado na amplitude de um jardim de elementos neoclássicos, acontece a descoberta da mulher e a desilusão pelo homem em uma coreografia contemporânea erótica e violenta, assistida por três figuras femininas - as graças? As fúrias?

Reside talvez no espaço Intimidade a motivação inicial de Deren - a mulher produto de uma sociedade machista encontra não mais que as condições para atingir as expectativas predefinidas. A recusa de aceitação da condição feminina não parte de uma vontade mas da individualidade, do abandono do prefixado e, portanto, de tudo o que lhe é natural. Perante a desilusão com o homem, perante a não-alternativa de definição própria por oposição ao caráter machista, a nova mulher precisa abandonar o espaço da intimidade, remeter-se a um espaço sem fantasia, sem símbolos, reingressar na natureza para redescobrir a sua função natural.

A obra finaliza com um aviso contra a tendência afiliativa da mulher em uma sequência na qual Rita Christiani, após recuperar a presença das graças femininas, reentra no jardim dos símbolos para encontrar o mesmo Frank Westbrook cristalizado em um pedestal (numa posição vagamente próxima da de Mercúrio em Boticelli) que então volta a vida para a perseguir. O optimismo e a ilusão femininos subentendem a sua destruição, sua não-vida, seu noivado com a morte. No caminho feminista de (re)definição o reencontro de uma posição perante o homem exige mudanças profundas na natureza da mulher.

A incapacidade de associação imediata de um significado as imagens e plano de Maya transporta o seu espetador a uma disposição de sensação pura, não interpretativa. O filme de 16 mm de Deren é uma referência enquanto poema visual - perante a não compreensão somos obrigados a sentir. Não deixa de ser, no entanto, um ensaio sobre tempo e espaço em que as forças da psicologia e da individualidade são retratadas contra um pano de fundo de crítica social por via de uma representação onírica carregada de símbolos dos sentimentos, ansiedades e emoções específicas da autora. É representativo dessa condição a ‘fuga psicogénica’ da personagem mulher para a própria Maya nos momentos mais significativos do filme - no abandono do jardim, na sequência final da perseguição. Maya, que também personifica a personagem que desenrola o fio no espaço Pré-Sociedade e que por isso representa a Mãe, a Educadora, propõe-nos sublimemente e subliminarmente que a mulher que foi está sempre presente na mulher que é.

Nota biográfica
Nascida Eleonora Derenkovskaya em 1917 em Kiev, atual Ucrânia, Maya Deren é considerada a primeira diretora de cinema experimental. Rejeitou a tradição abstracta de Man Ray, Léger, Duchamp, Hans Richter, Sarrut ou Eggeling. Casou com Alexander Hamid em 1943. Morta em 1961, em Nova Iorque, Deren tem influenciado e influencia hoje os mais originais diretores de cinema e vídeo. É inegável a presença de referências a sua obra em Mulholland Drive e Inland Empire, de David Lynch e nos video-clips de Herb Ritts para Cherish, música de Madonna, ou Love Will Never Do Without You, de Janet Jackson.

A.