Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Cantileno

O texto 'Cantileno' de Maria Gabriela Llansol, escritora portuguesa morta em 2008, proporciona ao leitor a imersão em um processo criativo característico da artista. Apelidada de 'única e possível constinuadora de Pessoa' por Richard Blin*, a escritora destacou-se na proposta de uma redefinição da experiência do sujeito com a linguagem. Esse seu texto é exemplar por várias razões. Enquanto síntese da sua obra pela presença de temas e elementos transversais à sua poética e narrativa, mas também por alcançar estabelecer, de forma especial, uma relação de 'materialidade' com o seu leitor.

Os traços transversalmente Llansolianos apresentados fortalecem essa materialidade. Organizado em quatro partes, ‘Cantileno’ inicia proporcionando uma identidade e uma voz ao sujeito objetivo, o narrador-personagem. Esse narrador, que numa leitura possível é o próprio texto, está em construção, ele se define por imposição ao seu autor, um autor projetado pelo sujeito, que afirma ‘nasço da ponta de um lápis’.

O sujeito estabelece com o seu autor uma observação biunívoca, assiste à sua própria definição. A autora cria assim um sujeito que observa o seu autor, num exercício que relembra Pirandello até em alguns traços caricaturais. O sujeito assume uma relação de exigência, reclamando sobre o seu autor ‘que cada objeto objetive a minha existência naquele olhar’.Essa independência reconhecida ou concedida ao sujeito é confirmada na segunda parte do texto. A reflexão da influência da luz, do anoitecer de Lisboa, sobre o ciclo de criação do autor é reflexionada pelo sujeito que apela ‘venham ver o espaço caminhante da noite, sentir o que poderá ser a frase inconcludente do tempo’, definindo a relação de automatismo, de fruição, da autora com a sua obra.

A terceira parte descreve um sonho do autor projetado, de revelação de um tema que se apropria, em seguida, da narrativa do sujeito, que explica o sonho, adicionando-lhe dimensões, detalhes, explicações e uma vivência efetiva. A construção do texto consolida-se a partir desse enredo. O texto encerra-se na sua quarta parte mediante um abandono, uma luz que se apaga para o autor projetado, como se aquela realidade parasse de estar disponível, acessível. Sobra a sensação de necessidade de aguardar. Aqui se escuta a voz mais clara, do autor talvez, mas também pode ser a do texto, numa reunião de todas as dimensões narrativas anteriores. O que deixou de estar disponível, o que encerrou, foi o enredo, porque a criação de uma identidade criativa, essa, é comum e partilhada entre autor, sujeito e autor projetado.

Talvez a linha inicial do texto contenha tudo proporcionando ao leitor uma iniciação e um aviso - ‘Eis aqui a rua e a voz estranha que me escreve’.

22 de Julho, São Paulo

*Le Matricule des Anges (nº 114, Junho de 2010)