Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

It's been so long now...

So long

Extraordinário tempo e lugar para começar a morrer: sob a sombra fresca das tílias,
no pino do ameno verão bávaro, a beber uma cerveja com A.
Três anos volvidos. Sem te ver. Sem te escrever sequer uma palavra.

Ergo-me e caminhando ouço o som dos meus passos na gravilha,
num eco ao longe dentro de mim, Rainer Marie Rilke. 
Dele recordo o poema que fizemos nosso, em Potsdam, sobre a chegada do outono.
Recordo a leitura dos Cadernos, Berlim e o Palácio des Sans Soucis.
Bruxelas, o tram 81 para o Mérode e Estraburgo imaginado, a tua última adolescência sem mim.
Sesimbra, a Arrábida e as manhãs junto à materna brancura do teu corpo.

Tu eras assim como a tua cidade, minha doce perfeita asseada bávara. 

Penso. Soube de cor cada trejeito teu, cada sarda do teu rosto.
Todas as palavras que trocámos estiveram escritas como um longo poema no meu coração. 
Escrevi-te, em decassílabos, sonetos em inglês!
E pela manhã, ao acordar, inventei todas as maneiras de dizer amo-te
completamente, profundamente, verdadeiramente. 

Palmilho a tua cidade. A tua presença imaginada é de novo total.
Intuo-te em cada esquina, em cada passo, com a sofreguidão de outrora. 
Adivinho-te em todas as cabeleiras loiras. Em todas as vozes bávaras és tu quem me fala.
Munique de madrugada, passada uma vida, e eu estou certo que tu estás aqui!

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No crepúsculo, antemanhã, na hora da partida, por fim, eras mesmo tu!
Sentada à beira de uma fonte com a tua saia comprida de chita, abraçada a um rapaz bávaro.
Ris. O teu sorriso, outrora tão inocente, é cruel, inaudível.
Tu que foste um dia a pureza neste mundo, a minha purificação impossível.
O meu corpo agita-se num grito, dos tornozelos às têmporas, 
e quer por tudo ir junto a ti. Encontrar-te, ver-te, tocar-te, falar-te
acreditar pela última vez na impossibilidade desse amor.
Pela última vez, sinto muito fundo que poderias ser minha,
que tudo fora um desentendimento, um desencontro, um desvio.

Quando decidido me encaminho para a fonte para saber se és tu quem ali está 
Aí, subitamente, hesito e lembro-me que esse sonho, aquele sonho, sonhei-o eu outro numa outra vida.
E, seguindo em frente rumo à boca do metro, digo-te, definitivamente, adeus.

Adeus, meu último amor. 

Agora é mesmo o fim.

Escrito em Bristol no dia 21 de Abril de 2010. Inspirado na leitura continuada do livro de poemas Fábula , de António Franco Alexandre.