Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

Pode haver vida em Marte

Life on Mars, na interpretação do cantautor brasileiro Seu Jorge, é especial para mim a vários títulos. O seu poder resulta, não tanto da demonstração de uma verdade existencial, ou da evocação de uma emoção peculiar, como pela associação de várias ideias familiares, porém numa ausência de encadeamento lógico ou narrativo para além daquele que a própria melodia engendra. A letra reza assim: (digam isto a vocês mesmos em português do Brasil, se fazem o favor):

muitas vezes o coração 
não consegue compreeender
o que a mente não faz questão
ou nem tem forças para obedecer

quanto sonhos já destruí?
e deixei escapar das mãos?
se o futuro assim permitir
não pretendo viver em vão.

meu amor, não estamos sós,
tem um mundo a esperar por nós.
num infinito do céu azul
pode ter vida em Marte,

então, vem cá, me dá a sua língua,
então vem, que eu quero abraçar você
seu poder vem do sol,
minha medida,
meu bem, vamos viver a vida
então vem, se não eu vou perder quem sou,
vou querer me mudar para uma life on Mars.

Várias ideias me são caras nesta sequência de estrofes. Primeira, a de que temos a obrigação de fazer alguma coisa com as nossas vidas e da possibilidade (efectivamente inexistente) de haver vida em Marte funcionar como uma admoestação existencial (algo como o comando Muda a tua vida, de Rainer Marie Rilke).

Segunda, a sugestão de que a fonte do amor é o sol, como em Platão. 

Por último, a ideia de que o amor terreno (ou natural, no dizer de Agustina Bessa-Luís) é, para o homem,  a única saída de uma existência organizada em função de uma sequência de transformações interiores sem sentido.

Bowie disse isto a propósito deste trabalho de Seu Jorge: Had Seu Jorge not recorded my songs in Portuguese I would never have heard this new level of beauty which he has imbued them with.


D.