Ando há um ano a ler os textos curtos de Kafka (primeiro os contos, depois os aforismos e agora o diário). Várias razões me levaram a ele: M., Roth, Steiner. A primeira impressão, e também a mais duradoura, é a perplexidade. Em seguida o óbvio: a nudez da linguagem e, a cada página, uma labareda. Mas, afinal, sobre o que escreve Kafka?, perguntei-me inúmeras vezes. Continuo a perguntar-me. Parte das suas histórias talvez se possam resumir apenas a duas. Na primeira um homem (o Homem) acorda um belo dia e comete uma atrocidade moral. O ato causa-lhe enorme surpresa e perplexidade. Procura compreender o que se passou e, pelo caminho, numa desgastante e frustrada cruzada intelectual, descobre a existência do Mal. Ao fim de um tempo desiste da empresa, esquece-se do assunto e regressa aos seus afazeres. A segunda história é em tudo semelhante à primeira, mas desta vez o Homem sofre uma atrocidade moral.
Só após ter lido os aforismos me apercebi de que há nestes textos uma mensagem de esperança.
É-nos imposto fazer o negativo, o positivo já está em nós. Aforismos de Zürau, #27.
Post dedicado a M.
D.
Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.