Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

'Fruto Estranho' no MAM Rio de Janeiro

Nuno Ramos 'Verme', a Vision by Seth Solo

A nova exposição de Nuno Ramos é monumental. Com curadoria de Vanda Mangia Klabin, é composta por três peças, duas inéditas – “Fruto Estranho” e “Verme”, e “Monólogo para um Cachorro Morto”, anteriormente apresentada no CCBB Brasília em 2008.

Subindo a escadaria do Museu de Arte Moderna ao 2º andar, somos recebidos por duas enormes árvores desfolhadas. Em cada copa um monomotor. O conjunto tem seis metros de altura. Os troncos e os aviões formam uma massa única, aliviada de suas diferenças materiais por uma camada de sabão.

Enfrentando o enorme conjunto, num ecrã pequeno, um filme em preto e branco mostra uma árvore jovem, única numa planície. O seu tronco divide o espaço em dois. Atacada por um homem, resiste, é finalmente derrubada e depois atacada à espadeirada. Esse excerto de ‘A Fonte da Donzela’ de Bergman (1960), com Max Von Sidow, é acompanhado da música ‘Strange Fruit’ (1936, Abel Meeropol) na voz de Billie Holliday.

Da mezannine a visão engrandece-se. Observada de longe, a peça dupla, desigual, assimétrica, assume uma proporção diferente. Não é uma instalação, é um tempo. É absoluta a presença das enormes árvores, cada uma com seu avião.

No chão, em cada extremo, um contrabaixo depositado na sombra de uma das asas. Os instrumentos são pequenos no todo. Em cada um, embutida, uma caixa de aço contém uma gordura, um óleo. Uns três metros acima do solo a asa está perfurada por um tubo de vidro da qual um líquido transparente, soda cáustica, doseada como soro hospitalar, goteja sobre o óleo. O dispositivo, inspirado num conto de Pushkin sobre uma árvore que pinga veneno, mantém o processo de saponificação.

A obra seguinte, “Monólogo para um cachorro morto” parece pequena. Não é. Cinco painéis duplos de mármore branco, deitados sobre o maior lado e dispostos em fila, pouco menos altos que um homem. Lápides iluminadas por dentro, irradiando luz, convidativas, mostram e escondem um texto gravado na pedra interior. No extremo do primeiro painel um ecrã mostra um filme. Na berma de uma estrada, um cão morto atropelado e um aparelho de som.

Sentados no chão, ao lado daquela imensa linha de mármore irradiante, ouvimos e vemos. Inicia “Poesia, entre nós dois” na voz calma do artista. O tempo passa com a ajuda dos carros rápidos na estrada. “Cachorro, você faria o mesmo? Faria o mesmo que eu fiz? Faria o mesmo por mim? Incendiaria meu corpo num barranco, num chão com folhas de mamona? Cobriria meus olhos com dois girassóis enormes e botaria fogo? Colheria as minhas cinzas cuidadosamente? Cachorro? E quando reclamassem meu corpo, a família e os amigos enlutados reclamassem meu corpo, como descobriria meu nome? Que nome daria a eles? Que nome você daria? Qual o meu nome, cachorro?”

A terceira peça, “Verme”, está num canto mais escuro do terceiro andar. É constituída por duas enormes esferas, densas, terrosas e por dois filmes de curta duração. Os filmes são projetados pelas esferas, de dentro delas. Cada uma aponta à sua parede e as paredes são ortogonais entre si. O mesmo filme é projetado pelas duas esferas.

Num dos filmes dois actores da Companhia do Feijão lêem em voz alta o texto “Verme”, do artista. Apenas os substantivos e a palavra verme são ditas em uníssono. Sentados, suspensos numa parede, cada um em sua plataforma. No outro, um “pornô” musical caseiro, músicos de ‘chorinho’ têm relações sexuais com atrizes do gênero, acompanhados de sua banda, que toca.

Frequentar aquele espaço, reduzido pela presença das esferas, não é suficiente para assistir. As esferas escondem, quase não permitem ver simultaneamente as duas projeções e ouvir o som, amplificado apenas para um espaço entre as esferas. A procura de uma conciliação exige que nos posicionemos num único ponto da sala. Aí, com as duas enormes esferas pela frente, a perspectiva permite um contínuo das duas projeções.

Dizer que o mesmo filme é projetado pelas duas esferas é uma imprecisão. Para cada filme, as cenas foram captadas em planos diferentes e montadas de forma independente. O filme projetado pela esfera da esquerda é o mesmo da esfera da direita mas não é - as cenas são as mesmas mas os planos são diferentes. É um filme duplo. É como se tivéssemos um olho de cada lado da cabeça. Estamos subjugados, atentos a ponto de nos dividirmos.

Os espaços e tempos de Nuno Ramos proporcionam uma experiência de desconforto. Somos provocados por detalhes que nos induzem em processos de racionalização, de tomada de consciência da transitoriedade. Em “Fruto Estranho” somos relembrados da dimensão humana perante a natureza e acordamos num pós-tempo em que tudo é degradação, uma degradação continuada pelo soro que pinga. Em “Diálogo...” somos depositados nas lápides, naquele altar vertical, penitentes pelo cão-mártir-desconhecido, nosso igual, nosso superior. Em “Verme” somos manipulados, confrontados, insultados. Nuno Ramos tem essa capacidade de construir peças empáticas, das quais nos aproximamos incautos e confiantes, prontos a consumir uma história, a constituir uma memória fácil, a sentir nada. Desilude-nos sempre.

http://www.artecapital.net/criticas.php?critica=290

A.