Vários aspectos das suas vidas se associavam à cor azul. Para começar, o fumo denso que, como serpentes, subia dos seus cigarros para o tecto da divisão da casa. Depois, vários indícios foram lentamente emergindo, como bolhas de ar num denso molho em preparação. Primo, a melodia que A. escutava na telefonia. Secundo, o mostrador do relógio de pulso que T. acabava de estrear. Tertio, a face estupefacta de D. Na manhã seguinte as autoridades punham em curso uma nova investigação.

O teu famoso impermeável azul (III)

Era inevitável que me relembrasse dos eventos que nos juntaram, nem que fosse apenas para me esquecer do pranto da Jane. Incrível, mas tinha sido um dia comum, igual a tantos outros. Eu estava feliz por estar com a Jane junto dos nossos amigos. Descêramos ao bar do bairro para beber uma cerveja; ao entrar, tomei nota mental da tua presença. A Jane soluçou que ao ver-te, no teu ar desesperado, os teus olhos perplexamente lúcidos da tua desesperança, sentiu uma compaixão inconsolável. Envergavas, como era habitual nesses tempos, o teu famoso impermeável azul, cada vez mais coçado pelo tempo e com um rasgão característico no ombro.

Fui pedir uns copos e encontrei por acaso uns amigos de outras andanças numa mesa animada. A Jane, atraída pela tua miserável condição, foi, disse-me ela, falar-te com timidez. Durante a cena insuportável que agora recordo da Jane a soluçar os acontecimentos, perguntei-me se ela te odiava a ti ou a ela mesma. Mas não te faço esta confissão porque te queira mal, pois foste, na verdade, o meu único irmão, o meu assassino. Quando ela se abeirou de ti, perguntaste-lhe de chofre se ela te acompanhava num chá no teu apartamento. Precisavas de conversar com ela tranquilamente. Ela disse-me que assim que te ouviu soube de imediato (um jacto de adrenalina rebentava-lhe adentro o peito) que iria aonde tu estivesses disposto a ir.

Imagino os teus sentimentos durante os meses que durou a vossa relação, nos pensamentos que te corroíam enquanto lhe ministravas o teu pouco amor. Nunca a quiseste verdadeiramente. Para ti, tratava-se de provar a intrínseca maldade inconsolável do mundo. Ao teu lado, quando partiste, apenas o teu famoso impermeável azul. A ela deixaste-lhe a incompreensão envolta numa madeixa do teu cabelo preto. Mas, no fundo, agradeço-te, River. Todas as manhãs em que fingi ignorar a turvação funda que jazia nos olhos dela, o sentido de todas essas manhãs convergiu para aquela noite, cristalino na facilidade com que a fizeste tua e lhe envenenaste o coração. Eu que julgava que essa turvação era ela mesma, e o sentido do meu amor por ela o facto de eu a conseguir perdoar. Esta é a confissão que te deixo.

Quero terminar esta carta sem mágoa, River. Por isso digo-te com franqueza que, se algum dia apareceres por cá, para me visitar a mim ou à Jane, não desanimes, pois o teu inimigo dorme e a minha mulher é ainda de ninguém.

O teu sincero,
L. Cohen

D.